DECO PROTeste Casa - acesso habitacao entrevista goncalo antunes
João Ribeiro/4See

Entrevista a Gonçalo Antunes: “Nos últimos 50 anos tivemos uma evolução extraordinária no acesso à habitação”

Como evoluiu o acesso à habitação nos últimos 50 anos, desde a Revolução de Abril? A DECO PROteste Casa entrevista o investigador Gonçalo Antunes.

 

“Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação”, cantava Sérgio Godinho há 50 anos. Mas será que o terceiro termo destes cinco que compõem a forma perfeita da liberdade, segundo o músico, se cumpriu com a Revolução?

Gonçalo Antunes, geógrafo, especialista em políticas de habitação e professor universitário, não tem dúvidas sobre o verdadeiro salto nacional no acesso à habitação com a chegada da democracia.

Apesar dos problemas graves vividos atualmente no setor, é bom não esquecer números que já disseram tudo em relação ao passado: “em 1970, não existiam alojamentos suficientes para todas as famílias portuguesas, apenas 64% das habitações tinham acesso a electricidade, 58% possuíam instalações sanitárias, 47% detinham acesso a água canalizada e 29% usufruíam de duche ou de banho.” Uma realidade que já não é assim... 

Aos 50 anos, a democracia conseguiu resolver, ou atenuar, os problemas de habitação em Portugal?

Não tenho dúvidas de que nos últimos 50 anos tivemos uma evolução extraordinária no que respeita ao acesso à habitação. Não obstante todos os problemas que hoje estão sobejamente identificados, o domínio habitacional é um dos que mais evoluiu nas últimas cinco décadas.

Em Abril de 1974 quase tudo estava por fazer no que respeita às políticas de habitação. Veja-se que, até 1974, as condições habitacionais eram muito precárias para parte substancial da população, fosse em ambiente urbano ou rural.

Os números ilustram bem qual era a situação do país: em 1970, não existiam alojamentos suficientes para todas as famílias portuguesas, apenas 64% das habitações tinham acesso a electricidade, 58% possuíam instalações sanitárias, 47% detinham acesso a água canalizada e 29% usufruíam de duche ou de banho.

A situação era assim em todo o território?

Nas grandes cidades, como por exemplo em Lisboa, disseminavam-se os chamados bairros de barracas (ou de lata), assim como os bairros clandestinos que apareciam nos concelhos limítrofes.

Nos bairros de barracas, as condições de vida eram difíceis, em casas precárias sobrelotadas, erguidas no modelo de autoconstrução, sem ligação direta às redes de eletricidade, saneamento básico ou água potável. Nesses bairros, persistiam surtos de cólera, que levavam à morte de dezenas de pessoas. Em ambiente rural o cenário não era muito melhor, antes pelo contrário. Portanto, existiu uma grande evolução neste domínio.

Agora, não diria que o problema foi “resolvido”. Mas essa não é uma questão particular ao nosso país. O problema da habitação não foi resolvido seja onde for, existem sempre dificuldades inerentes, embora se possam fazer sentir de forma diferenciada e multidimensional em cada circunstância e conjuntura.

A revolução trouxe um impulso e uma dinâmica intensos a este setor. O que destaca das iniciativas e das medidas tomadas no período pós-revolução?

No período imediato à revolução destaca-se de forma óbvia o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), que apareceu no verão de 1974. Foi, efetivamente, a medida habitacional mais vanguardista e disruptiva a ser implementada no nosso país.

Surgiu num ambiente muito próprio de reivindicação popular e de exaltação político-ideológica. A importância do SAAL não está na questão quantitativa, no número de casas que construiu, mas sim na questão qualitativa, de como as pretendia construir. A grande inovação era possibilitar à população que vivia nos chamados bairros de barracas participar ativamente na construção do seu bairro e da sua casa, conforme as preferências manifestadas pelos moradores, colocando-os no centro da discussão e ação. Era, portanto, uma medida participada e participativa, que pretendia colocar os técnicos e a população em pé de igualdade na tomada de decisão, ou, até, dar maior importância aos anseios da população.

Por estas e outras razões, o SAAL foi inovador em Portugal, mas também a nível internacional. Foi, efetivamente, a medida mais marcante dos tempos que se seguiram à revolução.

Gonçalo Antunes: "Desde o início do século XXI temos assistido a uma diminuição da atividade das cooperativas, mas é fundamental que seja recuperada" (imagem: João Ribeiro/4See) 

 

Nos anos 90, os poderes públicos declararam o fim das “barracas”. Mas sucederam-se a elas bairros isolados, com muitos problemas. O que terá falhado?

Na década de 1990, o problema dos chamados bairros de barracas era muito significativo e foi “resolvido” já tardiamente, em grande medida pelo Programa Especial de Realojamento (PER), lançado em 1993, que pretendia “erradicar” esse tipo de situações nas duas áreas metropolitanas (Lisboa e Porto).

O PER foi um programa importante, numa perspetiva quantitativa acabou por resolver o problema que propunha solucionar. Em rigor, o PER foi a política de habitação que permitiu a construção de um maior número de habitações públicas em Portugal, cerca de 35 mil fogos.

Mas esse sucesso quantitativo esconde uma realidade mais complexa no domínio qualitativo, no que se refere à qualidade do que foi construído. Nesse aspeto, temos excelentes exemplos daquilo que não se deveria ter feito.

No entanto, devemos sublinhar que a realidade do PER é muito complexa e heterogénea de município para município. Alguns municípios tiveram maior cuidado nas intervenções que fizeram, outros nem tanto. Assim como alguns municípios utilizaram efetivamente o PER como instrumento para realojar a população que vivia nos bairros de barracas, enquanto outros deixaram passar essa oportunidade.

O século XXI trouxe um aumento exponencial no mercado de arrendamento e de compra. Que fatores contribuíram para esta subida?

Na última década tivemos um aumento muito considerável do preço das habitações. As razões são muito diversas. Destacando apenas alguns fatores, podemos salientar o longo histórico de políticas de habitação desajustadas, a liberalização do mercado de arrendamento, as isenções fiscais excecionais para residentes não habituais, a construção em mínimos históricos, o crescimento do turismo urbano e do alojamento local, o aumento do interesse imobiliário a nível internacional, as taxas de juro historicamente baixas.

Muito mais se poderia apontar, mas estas são algumas das razões que, no seu conjunto e cumulativamente, contribuíram para a situação atual, de elevados preços das habitações e enormes dificuldades no acesso à habitação.

Um incentivo maior à formação de cooperativas poderia atenuar a atual crise da habitação?

As cooperativas já tiveram um papel muito importante na promoção de habitações a valores acessíveis, em particular nas décadas de 1980 e 1990. Desde o início do século XXI temos assistido a uma diminuição da atividade das cooperativas, mas é fundamental que seja recuperada.

O terceiro setor pode ser fundamental para o aumento de novas habitações a preços acessíveis, mas para tal necessita de programas pensados e direcionados para a sua atividade.

Conheça também a opinião de Helena Roseta quanto à habitação cooperativa